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terça-feira, 5 de julho de 2011

CRÔNICA 14 - HISTÓRIA DE UMA LUVA (publicada na revista tatame 183)


Eu nasci apenas couro, como tantas outras, um pedaço meio sem cor, um mero material esperando ser alguma coisa. A maioria virou banco, sapato, chapéu e outros aparatos tão sem importância. Eu não. Eu virei luva. Não uma luva gorda de boxe, mas uma luva de MMA. Preta, lustrosa, aerodinâmica e com costuras reforçadas. Eu e meu par, junto com tantas outras esperamos nosso destino, penduradas e embaladas na fábrica. Sabíamos que seríamos especiais. É da nossa natureza estar presente em grandes momentos. Mal podíamos agüentar a ansiedade de ganhar o selo. Nosso nome. Alguns dias depois nós e algumas outras entramos numa prensa e fomos finalmente batizadas com o nome de UFC.

Foram meses num armário gigante separadas por tamanhos. As posicionadas na minha frente iam saindo, estava chegando a nossa hora. Mês que vem talvez. Nunca ficamos sabendo que fim tem aquelas que saem do armário, sabemos para onde elas vão, mas e depois? Me bateu esse medo quando éramos a próxima da fila. Estávamos sempre aqui, no escuro. Talvez fosse melhor termos sido feitas luva de motoqueiro, dizem que motoqueiros nunca trocam suas luvas mesmo depois de bem velhas. Mas em MMA? Estava aflita e com um incômodo nas dobras da costura, uma certa aflição nas micro ranhuras aonde a tinta impermeável nunca conseguia penetrar, até que a porta do armário abriu e nos pegaram.

Fomos desembaladas sem frescura num vestiário vazio. Reparei nuns tatames de encaixe no chão, aparadores, garrafas de água e a TV ligada na primeira luta preliminar quando um pessoal entrou. Eram varias pessoas falando coisas motivantes e eufóricas. Pareciam uma família ou amigos. No ombro de um deles um cinturão. Não acreditei. Eu e meu par seríamos as luvas de um campeão, o sonho de todas nós, a glória maior. De ordinárias e iguais seríamos imortalizadas em vídeo. Nesse momento Maurício Shogun Rua aparece na sala.

Sério e cordial, ele sorri e passa confiança para todos assim como passam para ele. Não está tenso, mas nós três sabemos o que está em jogo. Quando o cutman começa a atar suas mãos o rosto muda. Percebi. Tantos ajudaram e tantos mais estão torcendo, mas o atleta é a ponta da lança, é ele que fura e é o primeiro a quebrar. Entraria para lutar sozinho se não estivéssemos com ele.

Nós somos colocadas, firmes, separadas pela primeira vez desde nossa confecção, cada uma em uma mão. Apertadas, adesivadas, justas e juntas com ele até o final. Eu fiquei na mão do direto, do maior impacto e logo senti a pressão de estar num campeão. Comecei a estourar nas manoplas, fiquei tonta, mas me acostumei rápido. Se tivesse dentes eles estariam cerrados e eu adoraria ser mão para poder socar com uma luva como eu. Eu agüento, quero ver se o adversário vai agüentar. Ele vai quebrar em mim.

No ocagon Jon Jones nos venceu e tomou o cinturão. Não consegui estourar um soco nele, mas te digo que se pegasse ele ia cair. Eu sabia o que tinha aqui dentro. A mão do lutador é nosso coração. Mas da mesma maneira que o destino quis que eu fosse a luva de um campeão, quis que terminasse dessa maneira. Somos só coisas. O acaso é mais finito conosco. Voltamos derrotados para o vestiário.

Havia sangue em mim, mas não era do adversário. Lágrimas me molhavam e Shogun não só se recusava a nos remover como apoiava a cabeça em nós. Pode descansar. Depois de minutos de silêncio sufocante finalmente nos retirou e jogou num canto. Trocou de roupa, voltou a ser pessoa normal e se foi sem olhar pra trás. Nos abandonou. Eu entendo. Não há muitos outros destinos para luvas como nós. Mas fiquei triste mesmo assim. A luz se apagou.

Horas depois alguém da limpeza aparece, pega meu par, joga no lixo e me coloca dentro de sua blusa. Nunca mais nos vimos. Fui entregue a um menino que ficou tão feliz em me ver. Sua mão pequena flutuou dentro de mim. Me levou para o banheiro, lavou, secou e pendurou numa parede ao lado da foto de Shogun. E aqui ficarei para sempre compartilhando sem palavras do mesmo sonho de meu dono. Só um autógrafo em tinta prateada ou branca, com caneta especial para couro. Ele querendo que o campeão o conheça e eu querendo que se lembre de mim. Eu nasci couro, vivi luva e morrerei memória.

Um comentário:

  1. Muito bom! Adorei a história! É um excelente argumento para uma curta ou uma BD...parabéns pelo seu dom.

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