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quarta-feira, 23 de março de 2011

ANÁLISE: UFC 128 - Shogun VS Jones


É complicado ver a fina linha da realidade com os olhos cheios de lágrimas. Lutas como a de Anderson vs Belfort, Penn vs Fitch, Shogun vs Jones são poderosas bombas de efeito moral. Cada inalada de tristeza pela derrota ou euforia pela vitória sufoca nossos pulmões, dificultando perceber que apesar dos resultados e torcidas MMA está engatando a quinta marcha e muitos não estão conseguindo acompanhar.
A evolução é contorcer menos por lutadores em específico e nos desdobrar mais pelo esporte. Menos por glórias individuais e mais pelo show. Mais do que lamentarmos por Shogun, podemos admirar presenciar ao vivo a metamorfose de um homem em mágica. UFC 128 assinou a certidão de nascimento de Jon Jones em outra dimensão. Uma povoada pelas lendas do MMA. Ainda pequeno e microscópico comparado a outros que conhecemos, verdade, mas ele já caminha pelas mesmas terras secretas que apenas os grandes parecem conhecer.

Shogun VS Jon Jones

Shogun vinha de cirurgia. Talvez seja a explicação mais biológica para seus movimentos lentos e doutrináveis contra Jones. Ao final do primeiro round o buraco escancarado da boca aberta já não era mais suficiente para puxar todo ar que seus pulmões precisavam. Estava acabado. 5 minutos com Jones foram suficientes para machucar seu corpo, drenar sua resistência e aplacar seu ímpeto. Um pequeno e lento Shogun foi maltratado por um gigantesco e veloz Bones durante quase 3 rounds completos, mas tive a impressão de que o sofrimento poderia ter acabado bem antes se Jones não estivesse se divertindo em espancar alguém que, enfim, agüentasse. Shogun foi dominado em pé, no chão, nas transições. Se voassem , teria sido no ar também. Jon Jones simplesmente era bom demais para Shogun nessa noite. E provavelmente em qualquer outra.

È impressionante a velocidade dos detratores em formar opiniões negativas sobre uma estrela quando ela cai. Desde que Shogun é obsoleto e só pegou lutadores medianos até que ele nunca foi realmente tão bom. Muitos desses estão embebidos em sentimento, frustração e descarregam no lutador, como um pai alcoólatra que chega em casa e bate no filho porque foi demitido. Shogun foi e ainda é um dos maiores lutadores do planeta. Feroz, pesado, versátil e com um coração de mamute. Um dos primeiros lutadores a realmente lutar em qualquer área do MMA, foi um visionário e ainda hoje é moderno. Frank Edgar, campeão peso leve, só sabe segurar a luta em pé e boxear. Shogun luta em qualquer lugar. Um lutador fantástico, atual e franco favorito contra quase qualquer atleta meio pesado da atualidade. O problema não são seus defeitos, que ele tem poucos. Fora o famoso tanque de gás que já chega furado, tem quase zero buracos em seu jogo. A questão é que Jon Jones é um dos melhores lutadores que já existiu e enquanto fãs e adversários acharem que isso é exagero, muitos outros tombarão que nem folha seca a seus pés.

A vantagem de MMA ser um esporte tão novo é que posso, aos meus 33 anos, me gabar de ser um veterano no esporte. Vi todos os eventos do UFC, Strikeforce, IVC, MECA, PRIDE, Dream, Rings, King of Kings, Cage Rage, WEC (menos os 3 primeiros) e Jungle Fight. Fora tantos outros menores. Presenciei o surgimento de Fedor, Anderson, Sakuraba, Minotauro, Wanderlei e posso afirmar que Jon Jones tem potencial para ir aonde esses foram e além. Ouvi muito que Fedor não passava de um russo gordinho e grosso, que Wanderlei nunca seria um grande lutador porque só sabia dar soco na cara, quando alguém derrubasse seria o fim da luta e etc. No começo todos foram vítimas de desconfiança, é saudável. Mas tinham uma aura especial, um brilho de genialidade que os separava da maioria. O mesmo brilho que Jones tem.

Jon Jones despedaçou Shogun lentamente e com requintes de crueldade, com o prazer de quem se maravilha e diverte ao encontrar um louco e corajoso o suficiente para se deixar apanhar aonde outros teriam desistido. E foi tirando pedaço por pedaço e espalhando pelo octagon, sem ódio, sem emoção, cortando sashimi com serra elétrica. Quando cansou, atacou de vez, estraçalhou e cuspiu o que sobrou em algum canto da grade.

Lutar com Jones é tomar surra de vergalhão, é cair de costas na caixa de ferramentas, é tentar acertar soco em mosca, é puxar pra guarda e lutar jiu-jitsu com as pernas de uma mesa aparafusada no chão, é ser apagado por um feixe de antimatéria. Jones que só teve destaque em wrestling na faculdade derrubou e controlou no chão campeões mundiais como Bader e Hammil. Anulou e devastou Shogun em pé com o muay thai que ele treina faz apenas 3 anos. Jon Jones está muito longe de seu potencial máximo e mesmo assim luta e vence sem dificuldades, sem cansaço, sem se ferir, sem aparentemente usar força. Não parece nem justo ele lutar com esses seres comuns que se esforçam, sangram, suam e essas coisas humanas.

Jon Jones é flor de luz que nasce na grama negra do comum, um raio que marca o caminho para o diferente, vai envergar a seus pés muitos lutadores queridos, amados, lendas e tantos mais sob aplausos da geração Jones. Jovens fãs que não tiveram o prazer de presenciar o nascimento de uma lenda, como os mais velhos já. Jones vai arrastar multidões, vai ser o primeiro lutador contemporâneo a unir nações. Fedor, Anderson, Minotauro, Wanderlei, Sakuraba e todos os outros já no último ciclo de suas carreiras e o dele no começo. Um presente do destino para manter o fluxo das coisas. O show não pode parar e o dele só está começando.

Mirko Cro Cop VS Brendan Schaub

O pragmatismo comercial de Dana White que leva bons lutadores como Chiquerim, Ronnys Torres e Jamie Warner a serem cortados sumariamente sem muitas chances é inverso ao quase apadrinhamento por outros. Cro Cop e Brandon Vera parecem sempre ter uma nova chance. Cro Cop após as derrotas para Napão e Kongo lutou no Dream, apanhou do Overeem e voltou para o UFC aonde protagonizou algumas das piores lutas da história do evento e ainda foi nocauteado 3 vezes. Todo atleta profissional sabe melhor do que eu a dificuldade de parar. A adrenalina da competição é um doping mental insubstituível, fãs ainda gritando seu nome, como ele pode resistir? Como uma criança vai sair por livre vontade de uma festa aonde tem amigos para brincar e bolo para comer? Mas depois de ser nocauteado pelo quase mediano Schaub e se esparramar no chão como batatinha quando nasce, acho que deveria considerar seriamente a possibilidade.

Cro Cop foi um dos maiores, não é mais. Deveria aceitar a função de embaixador do UFC na Croácia porque ouvir de Schaub um misericordioso “você lutou bem” ao fim da luta, poderia levar lutadores menos estáveis psicologicamente a depressão.

Schaub vai indo. Vence de um lutador desmotivado aqui, de outro em fim de carreira ali. Um dia vai fazer uma super luta contra Pat Barry ou Struve. Um lutador inexpressivo que seria engolido vivo se entrasse na jaula do GP do Strikeforce.

Jim Miller VS Kamal Shalorus

Com apenas duas derrotas, uma para cada um dos envolvidos na disputa pelo cinturão dos leves, Edgar e Maynard, Miller já acumula 20 vitórias. Quem vem desdenhando de suas apresentações ou apenas não reparando mesmo por conta da sua irreparável falta de carisma pode não ter percebido como ele evoluiu. Deixou de ser um lutador completo, mas que colocava técnica e tática a mercê de seu sangue quente e saia dando braçadas, para se tornar um lutador violento e letal, com a precisão de uma cobra africana. Miller não precisa de muitas chances para terminar uma luta. Na verdade só precisou de uma para finalizar o veloz e incrível Do Bronx no chão e nocautear o inocauteável Kamal Shalorus. Com a revanche pelo cinturão já marcada e com o vencedor de Pettis e Guida agendado para ser o próximo desafiante, a chance de Miller ainda deve demorar um pouco. Mas que ela chegará é tão inquestionável quanto seu esforço comovente para sempre melhorar como lutador.

Shalorus não parece ser feito das mesmas moléculas ou fibras que nós. Não parece sentir dor e absorve uma quantidade nem um pouco saudável de dano. A sua luta contra Warner no WEC foi a maior demonstração de diretos e chutes limpos na cara já captado em vídeo num combate não ilegal. E ele absorveu todos como pedra batendo em pedra, mas Miller o nocauteou mesmo assim nesse UFC 128. Lutando dentro e sem medo. Se Shalorus não agüentou o peso de seus ataques, poucos conseguirão.

Miller e Dennis Siver seria uma luta de alto impacto.

ÚLTIMOS ROUNDS

Marquardt se especializou em fazer lutas chatas. Sua última luta realmente boa foi em 2009 contra Wilson Gouveia.

Van Damme entrou com processo por direitos autorais contra Edson Barbosa pelo chute rodado que acertou na cabeça de Anthony Njokuani.

Tibau, Banha, Benavidez, Cachorrão, Pellegrino, Raphael Assunção, Njokuani e Barbosa no undercard mostra porque o UFC é o maior campeonato do planeta. O Dream faria um card principal com eles como estrelas.

Urijah Faber é muito divertido de assistir, mas é impressionante como ele não evoluiu nada nos últimos anos. Seu olhar está fixo no cinturão do peso galo e saber que foi o único a vencer o atual campeão Dominick Cruz deve enche-lo de falsas esperanças. Faber ficou sentado no pedregulho da fama enquanto Cruz vem evoluindo ano após ano.

Gostaria muito de ver Anderson vs Jones e Do Bronx vs Sotiropoulos no UFC Rio.

http://twitter.com/nicoanfarri

segunda-feira, 14 de março de 2011

CRÔNICA 12 - AQUARELA DE SANGUE (Publicada na revista tatame 180)


Todo corpo de Quinton Jackson debruça sobre as cordas do ringue, pendurado quase sem tocar o chão, quase como um beija flor morto em pleno ar. Os gritos histéricos de 100mil fãs abafam os pedidos de socorro de seus treinadores que arrebentavam as gargantas a procura dos paramédicos. Papéis prateados caem do teto celebrando aquele momento mágico, refletindo a euforia de todos e as luzes do estádio, deitando levemente e colando no corpo suado do derrotado, se misturando à poça sangrenta que formava na lona e escorria para o chão respingando nos pés dos comentaristas. De sua cara escura jorrando sangue, cartilagem do nariz esfacelada, ossos da face fissurados e olhos apontando pra dentro vem à memória de um dos momentos mais poderosos do MMA. Uma obra de arte pintada em aquarela de glóbulos vermelhos. Ao fundo seu nêmeses, nem vilão nem assassino, mas um herói temido, branco, careca, tribal na nuca, uma criatura demente e sem controle chamada Wanderlei Silva subia nas cordas e urrava marcando seu território. Os silenciosos expectadores asiáticos, aflitos e em êxtase, aplaudiam de pé a besta fera que se erguia no topo da montanha chamada Pride e fincava suas garras no hall das lendas do combate.

Impossível falar de Wanderlei Silva sem sermos respingados de sangue ou pisar eventualmente em estilhaços de dentes. O mais brutal dos lutadores de MMA lapidou a machadadas sua rota traumática de violência, nocautes, frenesi e glórias. Essa não é uma crônica sobre sua carreira, mas um espasmo de memória. Pequenas fatias de uma grande história ainda inacabada tal qual flashs de imagem estourados entre um soco e outro.

Mais do que conceitos de luta, ele distorceu nossa percepção de heroísmo. Em MMA o mocinho não é aquele que dá declarações politicamente corretas, é o que entra sem medo de bater na curva, é quem nos entende e coloca o corpo para acelerar sem medo de queimar um fusível, rubrica as vitórias e não choraminga derrotas. Nossos gritos eram o hormônio que corria em suas veias, os litros de sangue que enchiam seus olhos, a corda que suas mãos davam ao girar. Foi o primeiro grande lutador a entrar em simbiose total com a massa. Wanderlei entrava nos rings do Pride sobre uma catarse de berros, palmas e música eletrônica, nosso carrasco, nossa máscara, enquanto a vítima esperava indefesa, paralisava frente ao inevitável. Um porquinho no abatedouro. Não importava quem estava lá, era mais uma questão de como Wanderlei iria despedaçá-lo. Nunca beleza e brutalidade se mesclaram tanto quanto em seus momentos, um lutador que poderia ser escrito por Quentin Tarantino.

Quem esteve lá, no IVC 2 em 97, diz que se apagassem as luzes do estádio cada golpe entre Wanderlei e Arthur Mariano explodiria em fagulhas que iluminariam momentaneamente todo o espaço, como uma briga de facão seco e em brasa. Quem ouviu o estrondo oco de seus pisadões esmagando a caixa craniana de Dan Handerson contra a lona, martelando o chão seguidas vezes, diz que o derrotado só saiu vivo por que seu destino era outro. O estalo chicoteado do ligamento do ombro de Sakuraba estourando ao ser quebrado no solo como coco se espatifando na calçada, deve ser ouvido por ele até hoje em pesadelos. Wanderlei marcava com ferro quente os derrotados.

Sua história envolve ainda muitas derrotas, o nascimento de seu filho, cirurgias plásticas, a abertura de sua academia, o racha com Alejarra, uma postura de vida menos agressiva e tantas mudanças, mas nada disso interessa aqui. Esse texto é reflexo apenas de seu momento áureo, do doentio no espelho com aquele olhar louco que vem da medula, que tem apenas um alvo, a eternidade.

Com as duas mãos trançadas numa nuca as suas joelhadas colocaram para dormir as dúvidas que restavam sobre MMA ser o esporte mais incrível do planeta. Foi mais do que um lutador, foi um monstro hipervascularizado de olhar vidrado, respiração pesada, uma besta fera acorrentada dentro do calabouço tenebroso de nossa psique de onde saia para matar nossa sede de agressividade. Não entrava no ringue, era solto lá dentro. Ele não dava desculpas, nem nós. Wanderlei fazia o que tinha que fazer e as regras do esporte pacificavam sua violência e perdoavam nosso pecado.

Hoje ele é um homem pacato, mas Wand o destruidor mora em nossa alma para sempre. É a criatura que ainda esperamos rever cada vez que entra no octagon. Seu corpo já caiu várias vezes, mas a lenda permanece de pé. A sua trajetória é poderosa e sem romantismos. É a rosa de aço aparafusada no asfalto. É o gole fundo de absinto. É o trauma que marca uma vida. Quebrou e foi quebrado por nós. Era parte gente, parte a gente. Ele era milhões. Wanderlei foi nosso maior exército.